A poesia pede a palavra: O cordel urbano-social de Flávio Nascimento

Houve um tempo em que a poesia de feição livresca e acadêmica cedeu espaços a uma outra concepção de verso e, sobretudo, de uma posição que passou a nortear a geração de poetas que passa a ocupar espaços como movimento de cultura durante o período difícil marcado pela presença da ditadura militar. Ao silêncio que se impõe ás universidades como centros aglutinadores de conhecimento concorre a iniciativa de se tomar a dianteira em favor de uma produção que se distancia do mercado formal para impor os apelos de uma postura que se alia à linguagem determinando os rumos a serem seguidos.

Diante da censura como interdito às questões de foro político, os poetas partem para o ataque tendo como armas o encaminhamento de um plano de debate de tudo quanto representava nesse instante a possibilidade de se apresentar ao mundo trazendo consigo uma enorme bagagem de sonhos e utopias. Nesse contexto, inserem-se discussões acerca de um lugar alternativo que corresponda ao desejo de liberdade diante das formas de opressão resultantes do prolongamento do regime autoritário que amplia seu raio de ação em direção às formas de expressão de uma produção artística descolonizada, que traz em seu teor um legado de transformação que supera a estética em favor de seu posicionamento crítico.

Diante disso, a poesia de Flávio Nascimento insere-se como termo que acrescenta ao que se constitui dm movimento, a partir do que passou a compor um espaço canônico a possibilidade de se posicionar a margem de uma produção que pouco a pouco passou a buscar instâncias de reconhecimento na mídia televisiva, bem como nos melos acadêmicos e nas publicações dos editores de prestígio no mercado.

Isso deve-se ao fato de que grande parte dessa produção desaparece tão logo a democracia recupera seus antigos espaços, na medida em que se esvazia de seu sentido ideológico. Flávio Nascimento, por sua vez, opta por seguir o caminho de quem sabe o que quer e o que faz, não se deixando iludir pelo ouro de tolo de um sistema de mercado que usufrui do pomo maduro em troca do bagaço como inutilidade a ser descartada. Daí explicitar-se a prática dos recitais de poesia abertos à participação do público das ruas, quando sua poesia agrega os elementos rurais do coco, da embolada e da poesia de cordel que traz na bagagem, a partir de sua origem nordestina, aos estilhaços da cultura urbana do Rio de Janeiro, com ênfase para o samba e o rap. Essa iniciativa tende a aproximar elementos dispares que encontram no caos da metrópole a possibilidade de se fundirem dando origem a um terceiro termo da criação poética.

Para além do que possa significar um sentido de excelência, uma vez que recorre aos fragmentos dispersos como símbolos da modernidade, a poesia de Flávio Nascimento investe na eficácia de um projeto que se expande de sua origem às expressões do teatro circense e da música popular como filões explorados com extrema força criativa. Diante disso, a poesia dá conta de tematizar o cotidiano a partir de suas representações ao alcance da massa, traduzindo de forma lúdica as inquietações da contemporaneidade. Assim, o fluxo de sua verve mostra-se sempre disposto a dar mais um salto, no sentido de ampliar a condição da poesia como elemento que contribui do ponto de vista crítico para a efetivação do debate em torno de questões de interesse da maioria.

Essa abordagem, por sua vez, não reincide no equívoco de querer domesticar o povo, através de um discurso politizador, no sentido de sua participação como massa de manobra que segue a reboque do processo em curso. Mais que isso, os cordéis urbano-sociais de Flávio Nascimento descontroem a sisudez do discurso consensual em favor de uma tomada de consciência a partir da qual cada ouvinte se transforma em ator, inserindo-se ao contexto de uma criação coletiva que rouba do poema a representação da autoria em sentido fechado. Desse modo, a relação entre autor e leitor, ou ainda, entre ator e plateia, se invertem de modo radical, esvaziando a suposta superioridade da obra sobre o público.

A poesia, portanto, amplia seu halo de representação a partir dos significados múltiplos que se associam à atividade do poeta, na condição de quem interpreta diferentes papeis sociais, em vista da necessidade de ir aos espaços públicos, rompendo com a situação inerente à letra fria da palavra encurralada pela ação repressiva do sistema. Daí esse momento de crise oferecer a Flávio Nascimento a condição de poder desconstruir de modo absoluto o legado inerente à formação do ex-seminarista e mestre em literatura brasileira pela PUC do Rio de Janeiro, cuja dissertação aborda a obra de Lima Barreto.

Acrescente-se a isso sua atuação como professor de artes cênicas em escola municipais, quando a teatralização da poesia assume diante de seus alunos uma dimensão de absoluta liberdade criativa, adensando-se a isso a experiência do cineminha lambe-lambe, caixa de Pandora de onde brotam sucessivas situações de teatralização do texto literário. Assim, a poesia de Flávio Nascimento assume uma dimensão definitiva em relação ao rompimento que sua geração estabelece com a tradição exclusivamente livresca e acadêmica, colocando em um mesmo plano diferentes possibilidades de aprofundamento de técnicas circenses e dramáticas que se aliam ao cordel e ao samba.

Há que se pensar acerca da poesia de Flávio Nascimento como resultado de uma experiência que se multiplica em diferentes meios de expressão, contando com elementos de uma oralidade popular que traz de volta os emboladores e cantadores das feiras do Nordeste, bem como os menestréis e jograis medievais da Península Ibérica. Cabe lembrar que o cordel nordestino tem origem na chegada dos primeiros colonos que trazem da Europa os sueltos que se constituem em folhas volantes, originalmente penduradas em cordéis, de onde vem o nome pelo qual tornou-se conhecida essa manifestação. Além disso, os desafios de repentistas à poesia jogralesca improvisada nas diferentes formas das cantigas medievais.

Assim, a partir de sua chagada ao Rio de Janeiro, o pernambucano criado na Paraíba incorpora ao seu trabalho poético os elementos da cultura da metrópole, a exemplo do samba, que em sua origem recorre ao improviso da chamada roda de partido-alto, ou samba versado, cantado nos morros do subúrbio carioca, o que se constitui em gênero responsável pelo surgimento de mestres como Menininha da Mangueira, Aniceto do Império e Clementina de Jesus. Diante disso, a poesia improvisada coloca-se no lugar da poesia livresca como síntese de uma oralidade a que Flávio Nascimento executa com inegável talento.

Tendo como ponto de partida o improviso e a participação do público que o acompanha no refrão que repete ao fim de cada estrofe, Flávio Nascimento recorre ao princípio básico do que dá origem à poesia popular em diferentes instâncias, não deixando de levar em consideração a ordem de uma poesia que também pode remeter à contemporaneidade dos rappers norte-americanos que têm nesse diapasão do verso improvisado um núcleo de resistência à violência e à segregação contra negros e pobres nos subúrbios de Nova York. Daí aa origem da sigla rap, que quer dizer rhythm and poetry, do mesmo modo fazer jus à criiação melódica de um nordestino retirante da seca, como ele mesmo se autodefine, que como tantos outros, a exemplo de Bezerra da Silva, Mocinha de Passira, Dona Edith do Prato e Jackson do Pandeiro, mestres do ritmo, trazem à luz da oralidade do discurso dos que não têm voz, mas, por esse mesmo motivo, têm urgência em se expressarem. A incorporação de múltiplas de múltiplas tendências da poesia ritmada serve para que Flávio Nascimento, a partir da originalidade de sua poesia, possa se renovar a cada instante como caracteristica essencial de seu espirito de seu espirito de criador.

Em paralelo à produção de poeta e ator, nos ultimos anos Flávio Nascimento colocou em prática um projeto que há anos vem amadurecendo. Esse projeto correspponde à veia de intérprete popular do poeta de rua que passa à condição de cantor e produtor das canções que compõe sozinho ou em parceria. Dessa iniciativa resultaram alguns CDs que trazem a voz grave e segura de quem conhece teora musical e lê partitura, além de tocar violão. Há que se pesar, do mesmo modo, que ao poeta de rua que mistura todas as possibilidades rítimicas que a música e a poesia possam oferecer se acrescenta o estudioso da obra de Mário de Andrade commo sinõnimo de artista completo, que ao tempo em que escreve Pauliceia desvairada, Macunaíma e Os contos de Belazarte, produziu ensaios sobre cinema, música e artes plásticas, lecionou estética e história da arte, cantou e tocou piano, funcionando como uma referência para Flávio Nascimento, a wuem toca a sensibilidade dos que acreditam que todo ser humano é antes de tudo um artista. Por fim, acrescenta-se à sensibilidade do poeta popular o ouvido sofisticado de quem do mesmo modo cultua a paixão pela música de Beethoven, Liszt, Chopin e Debussy como um sinal evidente de que o poder da criação não conhece limites.

Valdemar Valente Junior

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