Onomatopeias e dissonâncias: a desconstrução da palavra na poesia de Flávio Nascimento

A condição singular que se faz presente na poesia de Flávio Nascimento investe em uma determinada dicção que inverte os termos do que se mostra como regra diante da valorização do significado que as palavras possuem, em vista de um tempo em que se faz preciso explicitar o que se diz e se escreve. A exemplo de uma canção de Tonzé que diz: “Eu tô te explicando pra te confundir/ tô te confundindo pra te esclarecer”, Flávio Nascimento revela em sua obra um espaço de atuação que se dedica a inverter o termos da palavra que se precariza para logo em seguida potencializar o seu poder e a sua força.

Nesse sentido, a explicitação de uma determinada expressão poética passa a se constituir em um mero detalhe, uma vez que o caráter dialógico da comunicação que se estabelece entre o poeta e seu público configura uma espécie de tautologia que faz com que a mensagem circule em um ir e vir que a distende de seu significado definitivo. Para tanto, concorre, além do texto escrito, o aspecto gestual que se adensa ao jogo de palavras que salta da página do livro para a voz da assistência que com ele estabelece relações múltiplas. Em vista disso, podemos recorrer ao exemplo do poema “Tico e Teco”, que descaracteriza o sentido lógico da palavra como expressão marcada por seu significado explicito:

Tico deu um teco
na asa do pato.
Teco deu um peteleco
no bico do marreco
e derrubou
o teco-teco.

Tico e Teco
Nem se tocam
se entocam
se escondem
se malocam.

Tico e Teco
tico-tico
Fazem telecoteco
com tamborim
agogô
pandeiro
e reco-reco.
Rique-rique
Nhoque-nhoque
Nheco-nheco.

Diante do que se explicita nesse poema, a opção de Flávio Nascimento corresponde à valorização da linguagem em seu aspecto lúdico e sonoro, sendo o jogo de palavras que a ele se sobrepõe responsável pelo rompimento de uma hierarquia que esvazia por completo o significado em favor do significante, recuperando determinados elementos que indicam nesse poema uma forte relação com as parlendas e jogos de memória trazidos como herança cultural da Península Ibérica pelas mãos dos primeiros colonizadores.

Nesse sentido, a volta ao passado medieval representa uma retomada de tempo que se coaduna a projetos estéticos que se aproximam da proposta dos poetas concretistas, na ocasião em que, como uma extensão de suas propostas mais radicais, dedicaram-se à tradução da obra de Arnaut Daniel, poeta provençal. Por esse motivo, o aparente alheamento que se verifica em “Tico e Teco” conforma-se como possibilidade de se poder transcender a lógica cotidiana em nome de um jogo intuitivo que se nega a oferecer explicações acerca do sentido real das coisas, uma vez que ao poeta, nesse contexto, interessa muito mais sentir do que vir a entender. Diante disso, a poesia cumpre sua função essencial ao se remeter a um conceito de originalidade que retorna ao passado na perspectiva do presente.

No que se refere à troca de lugares que Flávio Nascimento opera em seu discurso poético, essa posição corresponde, do mesmo modo, à dinâmica inerente à velocidade das ações do mundo contemporâneo, na medida em que lança mão de recursos de linguagem, a exemplo das onomatopeias, servindo-se ainda de trocadilhos, troca-letras e trava-línguas que concorrem como instrumentos colocam a poesia à disposição de diferentes variações que vão do arcaico ao moderno, do popular ao erudito. Se na Idade Média os recursos de uma poesia voltada para seus aspectos de oralidade atendiam à percepção apenas visual e sonoro, em vista do grande número de pessoas sem acesso à escrita, à proporção em que os textos não lhes eram acessíveis, hodiernamente a linguagem do rap, que em sua concepção, advindo dos guetos de Nova Iorque, significa rhythm and poetry, alia-se ao desejo de participação das massas da periferia que têm nas manifestações da linguagem um espaço de expressão social. A ausência do que posa representar a explicitação dos fatos descritos em seu sentido lógico e ordenado não confere qualquer valor ao poema, uma vez que ao público que o ouve cabe acompanhar seu ritmo melopaico como possibilidade e abertura à sua participação.

Por conta disso, podemos recorrer ao artigo “Um dia, um dado, um dedo”, de Augusto de Campos, que traz à luz do debate a diferença abissal entre os poetas que se servem da Poesia de Cordel no sentido de corrigi-la, do ponto de vista político, com relação aos verdadeiros cantadores do Nordeste. Diante disso, argumenta, recorrendo ao trava-língua “quem a paca cara compra cara a paca pagará”, retirado do folheto de cordel “A peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum” serem os cantadores nordestinos infinitamente superiores às contrafações de seus imitadores bem-intencionados. Por sua vez, essa vertente da Poesia de Cordel, bem como a que remete aos cantadores de coco e embolada do Nordeste, funcionam como referências à obra de Flávio Nascimento, nascido em Palmares, no interior de Pernambuco. No que concerne a seu aspecto rítmico, “Tico e Teco” reitera a proposta de seu autor, no sentido de abolir o significado do que o poema representa em sua função social, uma vez que a isso se contrapõe como marca de singularidade o caráter alegórico da linguagem como um retorno à sua origem remota. Ao tomar posse de diferentes elementos da sonoridade, a poesia de Flávio Nascimento, em diferentes momentos, recorre ao que na prática funciona como somatório de possibilidades que têm por objetivo explorar a comunicação ao seu limite máximo.

* * *

A capacidade de se poder emitir uma mesma mensagem sob diferentes expressões da linguagem se constitui em fenômeno raro entre os articulistas da escrita, sobretudo no que se refere à poesia, na medida em que cabe aos poetas, quase sempre, dar continuidade à tradição lírica que atravessa sucessivas gerações. Por conta disso, há que se pensar acerca de que o lirismo de Tomás Antônio, Gonzaga, Castro Alves e Vinícius de Moraes parece apenas ter um paradeiro no poder de síntese de João Cabral de Melo Neto ou ainda na experiência visual do Concretismo. Nesse sentido, no plano da elaboração estética e gestual que se dissemina com o advento da Poesia Marginal como um fenômeno de concepção abrangente, e por esse motivo não devidamente analisado em sua totalidade, os exemplos presentes na experiência múltipla que podem ser identificados na poesia de Flávio Nascimento abrem espaços à efetivação de uma proposta de linguagem que se atém à reelaboração contínua de seus recursos. Em vista disso, recorremos à observação desse processo de desestruturação verbal através do poema “O zumzum da Zeza” que serve como elemento capaz de aprofundar essa perspectiva:

Zeza, zaza, zuza
Zezeza
Zazuza.
Zuzu, zazá, zezé
Zezé, zizi, zumzum.
Zum, zum, zum, zum.

Zazá, Zezé, zizi, zozó
Zozó, oooooooooooó!
Só, só, só, só, tão só”
Zizi, iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!
Zezé, eeeeeeeeeeeeeé?
Zazá, aaaaaaaaaaaaaá!
Zum, zum, zum, zum, zum!

Zague Zeza!
Zeza zumbe
zune
zoa
voa, aaaá
Zum zum, zum!

A proposta de um poema que mesmo não estabelecendo um rompimento com a espacialidade verso, a exemplo do que promove o Concretismo, efetua uma redefinição semântica que o aproxima dessa tendência, o que deve ser observado com a devida atenção. Nesse sentido, há que se pensar na abolição da sintaxe que abre mão do sujeito, do predicado e do objeto, na medida em que a sonoridade de que se serve dá conta de uma representação do significante em detrimento de um significado completamente esvaziado de sua função. Na verdade, o jogo de palavras que que pode ser identificado nesse poema diz respeito a Zeza em razão do apelido carinhoso de uma amiga da família de Flávio Nascimento. A abordagem desse apelido, por sua vez, ao invés de se remeter a uma possível homenagem, em vista do que poderia representar um poema laudatório, concorre para que a desconstrução da realidade material da escrita, convocando uma série de elementos sonoros que têm no apelido Zeza o ponto de partida de sucessivas experiências que levam em conta a perda de sentido do que possa significar a expressão pragmática das coisas e dos seres.

Nesse sentido, há que se pensar acerca do português falado pelos brasileiros e sua diferença em relação à mesma língua em sua expressão lusitana. No primeiro exemplo, a influência de línguas essencialmente vocálicas, a exemplo do tupi dos índios e do ioruba dos africanos concorre para que a vocalização de palavras que na modalidade de além-mar sofrem um tipo de supressão que as fazem ser predominantemente consonantais. Diante disso, em razão do que Mário de Andrade propõe m sua Gramatiquinha da fala brasileira, podemos refletir acerca de sua proposição em torno de um conceito de língua brasileira, uma vez que, segundo o próprio Mário de Andrade, os portugueses nos teriam dado a gramática, nas não a língua. Daí “O zumzum da Zeza” servir-se com maestria de uma técnica a que Flávio Nascimento leva ao ponto extremo de um experimentalismo que consiste na supressão das consoantes em favor das vogais em um jogo onomatopaico que chega a uma espécie de exaustão proposital. A isso correspondem as referências acerca de uma teoria da linguagem na qual Jean-Jacques Rousseau conceitua seu sentido sonoro, na medida em que o significado das palavras atende ao aspecto sensorial dos sons que ao serem emitidos imitam a natureza.

O exemplo de “O zumzum da Zeza” pode ainda ampliar a possibilidade de a palavra poética destituir-se de sua condição hierárquica, no que concerne à concepção de um princípio logico e ordenado para vir a exercer a liberdade de se relacionar com seu sentido original, o que corresponde ao contato do ser humano com a natureza em estado primitivo. A esse respeito, podemos recorrer à memória de relatos do primeiros viajantes e cronistas do Brasil no século XVI. Assim, em seus primeiros contatos com os índios da tribo Tupinambá, no litoral de onde hoje corresponde ao estado do Rio de Janeiro, o missionário francês Jean de Léry, na condição de músico, anota em pentagrama fragmentos do que podem representar os primeiros sinais de uma musicalidade essencialmente brasileira. Esse registro, observado durante um ritual de antropofagia, corresponde à sequência monocórdica de palavras repetidas que reproduzem exclusivamente os ruídos emitidos pelos animais e a musicalidade que envolve a atuação humana em relação ao que se faz presente, interagindo a partir da harmonia com esse habitat. Nesse contexto, música e palavra se adensam em uma condição harmônica que faz com que uma represente a outra.

* * *

A proposta de desconstrução da palavra na poesia de Flávio Nascimento decorre do aproveitamento de diferentes materiais que aleatoriamente acabam por atender a um processo de colagem crítica que se serve da sobreposição de termos que são origem ao poema. Diante disso, verifica-se a já citado processo, incidindo no reaproveitamento da palavra precária, na condição de escombro que propicia a elaboração de uma nova estrutura poética. Em vista disso, o poeta se serve da ordem inversa dos elementos que arrola, recorrendo criticamente a uma linguagem que remete à ideologia dominante para destituí-la em seu sentido de realidade. Isso nos remete a uma canção de Gilberto Gil intitulada “O seu amor”, na ocasião em que o compositor recorre ao slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”, popularizado durante a ditadura militar, para transformá-lo em um símbolo de liberdade através do verso “O seu amor/ ame-o e deixe-o/ livre para amar”. Nesse sentido, o poema “Essa onda” serve-se de um conhecido slogan da televisão para promover a inversão de seu sentido original em favor de sua desconstrução:

Essa onda pega
é uma praga
é brega
é braba.
Essa onda é cega
é burra
é uma barra
é uma curra!
\Essa onda joga
afoga
maltrata
sufoca
enforca
mata, tá, tá.
Essa onda é uma farsa
é fascista
é reaça
é golpista.
(…)
Essa onda pegou
é um horror
é um cocô
é uma merda
no ventilador
no televisor!
(…)
Essa onda é submissa
é servil
é omissa
é contra o Brasil!

A partir do que se expressa no espaço em branco da folha, “Essa onda” apela para o que se configura como um acúmulo de palavras sobrepostas que partem de uma enumeração caótica para propor um ordenamento de atenda de modo exato ao escopo de crítica ao sistema que o poeta entabula. Diante disso, cabe ser reforça a palavra de ordem de Vladimir Maiakovski, na ocasião em que o Futurismo russo se torna o alvo da incompreensão da crítica stalinista, de viés conservador, ao afirmar que “sem forma revolucionaria não há arte revolucionária”. Assim, a poesia de Flávio Nascimento reafirma sua posição pessoal, longe de se aproximar da versalhada esquerdófila do que foi o Violão de Rua, cujos membros acabariam, quase todos, cooptados pela mídia, a serviço da indústria do entretenimento e manipulados pela ação do grande capital. Em vista do que se pode observar em “Essa onda” investe de modo radical contra o que considera como objeto da alienação capitalista, ainda que ao poeta não caiba propor nenhuma atitude redentora, uma vez que lhe cabe operar a desestruturação simbólica da palavra como uma metáfora à inviabilidade do sistema.

Nesse sentido, “Essa onda” cataloga elementos que remetem ao princípio de uma espacialidade que se amplia do campo visual para a crítica social e política, configurando-se como continuação do que se caracteriza como uma espécie de militância que se sobrepõe ao receituário de um discurso ideológico requentado, cabendo ao artista reinventar os códigos que se mostram caducos. Desse modo, ao invés de se apropriar dos espaços institucionais para promover transformações de dentro do próprio sistema, a poesia de Flávio Nascimento recorre à azáfama das ruas para desse ponto poder atirar os seus petardos. Nesse contexto, os símbolos da alienação e do embrutecimento decorrentes da ação orquestrada pelos meios de comunicação de massas, a exemplo a televisão, são enumerados em colunas que se servem da repetição como um meio de levar o leitor ao esgotamento visual e sonoro, com o objetivo de fazê-lo ingressar no clima de demolição crítica que o poema propõe. Mais ainda, o caráter participativo que se faz representar em “Essa onda” concorre como expressão oral que se amplia em face da exploração de uma espacialidade que que o aproxima dos poetas do Concretismo, tendo em vista a anulação do verso tradicional, além da viabilização a níveis extremos de um processo de precarização da palavra que não tem como fugir ao controle de quem a escreve.

Em face do que se pode observar, a redução da linguagem a uma espécie de grau zero, como explicita o conhecido estudo de Roland Barthes, se alimenta de sue caráter participativo servindo-se de sucessivas onomatopeias para reforçar seu envolvimento com a plateia. Além disso, a exemplo do que Mário de Andrade coletou em suas viagens ao Norte e ao Nordeste, valendo-se da audição para configurar o valor definitivo dos pregões de rua, Flávio Nascimento, do mesmo modo, lança mão desse mesmo recurso. Por outro lado, “Essa onda” inverte esse termo, uma vez que toma por empréstimo um réclame, em vista do conceito de indústria cultural, a partir de manifestações da subcultura de que a televisão se serve subvertendo-o e colocando-o à disposição do que corresponde ao pregão das ruas. Essa inversão, por sua vez, reitera a posição do poeta de rua como pessoa atenta aos diferentes fenômenos da cultura literária, o que lhe oferece a condição de dialogar com as diferentes formas da poesia ao seu alcance. O que resulta desse processo repercute a expressão de uma obra aberta, o que segundo Umberto Eco, a partir do que conceitua como indeterminação nas poéticas contemporâneas, servindo-se de múltiplas possibilidades e sentidos como instrumentos que tomam parte direta em sua concepção.

Valdemar Valente Junior

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