Poesia e oralidade: A trajetória de Flávio Nascimento

RESUMO:

O presente artigo tem por objetivo promover um estudo crítico acerca das diferentes manifestações da oralidade no âmbito da poesia que se estendem a outras formas de criação artística como uma espécie de reação à censura imposta pelo regime militar. Para tanto, coube-nos recorrer ao processo de criação lúdica e interativa que pode ser identificado na obra de Flávio Nascimento, poeta nascido em Pernambuco e radicado no Rio de Janeiro. Em vista do que se pode identificar no trabalho que vem desenvolvendo ao longo de décadas, podem ser verificados elementos que se constituem na caracterização múltipla de um projeto que agrega as diferentes expressões da poesia, do teatro, do cinema e da música popular como instrumentos de valor inusitado e original. Nesse sentido, cabem ser identificadas em seu trabalho artístico as formas de expressão cultural que se fazem representar por caminhos alternativos e desvinculados da grande mídia.
Palavras-chave: Poesia de rua; Representação teatral; Cultura alternativa.

ABSTRACT:

The purpose of this article is to promote a critical study about the different manifestations of orality within the scope of poetry that extend to other forms of artistic creation as a kind of reaction to censorship imposed by the military regime. For that, it was up to us to resort to the process of playful and interactive creation that can be identified in the work of Flávio Nascimento, a poet born in Pernambuco and living in the Rio de Janeiro. In view of what can be checked in the work that has been developing for decades, elements that constitute the multiple characterization of a Project the combines the different expressions of poetry, teather, cinema and popular music as instruments of unusual and original value. In this sense, it is appropriate to identify in his artistic work the forms of cultural expression that are represented by alternative paths and disconnected from the mainstream midia.
Keywords: Street poetry; Theatrical performance; Alternative culture.

Poesia e participação

A poesia alternativa afirma-se no âmbito da criação literária brasileira como um sucedâneo à ação da censura nos anos em que vigora a ditadura militar. Do mesmo modo, há que se pensar no fato de que aos poetas que surgem nesse momento não interessa a poesia como expressão de uma cultura livresca confinada a conciliábulos ou a manifestações restritas a uma plêiade de nomes consagrados. Por essa via, verifica-se, como um termo que agrava anda mais essa situação, o encerramento de um ciclo, no que tange ao interesse do mercado editorial pela obra dos poetas mais jovens, ainda inéditos, o que faz com que a informalidade dos livros impressos em mimeógrafo ganhe espaços até então impensáveis. “Há uma poesia que desce agora da torre do prestígio literário e aparece com uma atuação que, restabelecendo o elo entre poesia e vida, restabelece o nexo entre poesia e público”. (HOLLANDA, 1976, p. 10). Nesse sentido, o que se configura como Poesia Marginal, expressão que melhor define a produção poética que marca os anos do regime de exceção, corresponde a uma atitude que concorre com o mercado editorial formal a partir de edições em off-set, xerox, etc. Essa atitude contribui para que a Poesia Marginal se configure em investida que tem por objetivo a desconstrução de um modelo tradicional, promovendo uma alteração no âmbito da linguagem, em vista da recuperação do sentido coloquial que irá abolir a distinção entre a escrita e a fala.

De fato, há que se refletir acerca de que a Poesia Marginal ocupa espaços vazios, se for pensado o clima de liberação estética e comportamental desse tempo, na medida em que a produção de mimeógrafo atua como proposição capaz de invalidar o interdito de um sistema fechado aos autores renomados. Assim, a opção por uma poesia desvinculada do mercado editorial parece afirmar não ser mais necessária a interferência deste como termo de mediação, tampouco servir à atuação da crítica, quase sempre de viés conservador, para medir em seu escopo de atuação um determinado nível de elaboração estética. “Esvaziar o discurso poético de sua especificidade, liberá-lo de seu componente elevado e atemporal, desprezando os jogos clássicos da ambiguidade que o diferenciam dos outros discursos”. (SANTIAGO, 1998, p. 14). Nesse contexto, o rastro de liberação formal decorrente do Tropicalismo e do Cinema Novo concorre para que a Poesia Marginal assuma os aspectos inerentes ao conjunto das contradições que caracterizam a situação de dependência da cultura brasileira como uma extensão dos fenômenos em redor do mundo desenvolvido que nos chegam diluídos, sob a forma de fragmentos. Por conta disso, se cabe ao Tropicalismo passar a limpo as incoerências estéticas de uma cultura de apelo imediato e ao Cinema Novo colocar seu foco de atuação sobre o drama social, a partir de propostas culturais descolonizadas, à Poesia Marginal cabe retirar a criação poética do imobilismo livresco e trazê-la aos espaços públicos como um exercício de expressão coletiva.

A isso corresponde a atuação de Flávio Nascimento como poeta que concorre de modo decisivo para a desestabilização de um status quo responsável pela fixação da poesia como representação de um campo de força de natureza elitista, restrita aos salões e às academias. A publicação de Treva, seu primeiro livro, em 1967, com prefácios de Chico Buarque e Torquato Neto, impresso na gráfica da Penitenciária Lemos de Brito, no Rio de Janeiro, promove meios para que a poesia possa circular como material que passa de mão em mão nas filas dos teatros e cinemas, nas mesas dos bares, bem como em outros entrepostos de cultura. “Começam a proliferar os livrinhos que são passados de mão em mão em portas de cinemas, museus e teatros”. (HOLLANDA, 2004, p. 108). Diante disso, a Poesia Marginal adquire um sentido próprio, ao desfrutar de uma autonomia que até então parece depender do aval da crítica e do mercado editorial. Por esse meio, a colocação em prática do que Flávio Nascimento lança mão radicaliza uma tomada de posição que se serve da oralidade como carro-chefe de uma postura coletiva de participação da poesia trazida às ruas. Nesse sentido, a massa que se aglomera nos finais de tarde na Cinelândia, no Centro do Rio de Janeiro, se mostra como uma exigência essencial, não havendo como se possa dar conta desses recitais sem que ecoe a voz do público que a eles se agrega.

Em vista disso, a experiência individual de Flávio Nascimento mostra-se capaz de concorrer como projeto estético que passa da modalidade escrita às manifestações da oralidade e da teatralidade. Essas diferentes expressões têm como adjutório a participação de um público não pode permanecer passivo diante da proposta performática que o obriga a reagir, seja repetindo o refrão a que é induzido, seja movimentando-se, seguindo os apelos de que a declamação e seu aspecto gestual são como sugestões a que não tem como fugir. “A literatura interessava, não enquanto fenômeno especificamente literário, mas sim enquanto uma determinada faceta do fenômeno cultural”. (PEREIRA, 1981, p. 14). Há que se pensar acerca desses recursos como um aparato cênico indispensável à proposta de uma poesia que mistura todos os termos da comunicação imediata como condição inerente a um universo de expressões que permeiam uma dimensão coletiva da vida e da arte e suas formas de observação do cotidiano. Por esse meio, medidas as diferenças, há que se refletir acerca do que representam a Poesia Concreta, o Poema Processo e o Tropicalismo, na condição de manifestações artísticas que buscam amalgamar as múltiplas instâncias da arte em face das contradições de uma sociedade injusta e desigual.

As experiências empreendidas por Flávio Nascimento o fazem trazer para seus recitais a fusão do cordel nordestino ao samba carioca, a partir do instante em que passa a se servir de um pandeiro, agregando com isso um termo inovador ao que já se apresenta como proposta inovadora. Assim, a dimensão crítica de uma poesia marcada pela busca incessante de uma dicção que ainda se remete ao vezo acadêmico de quem se formara no Seminário Arquidiocesano de São José e conclui o mestrado em Literatura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro parece dar uma guinada de trezentos e sessenta graus em direção ao que representa a linguagem das ruas. “O flash cotidiano e o corriqueiro muitas vezes irrompem no poema quase em estado bruto e parecem predominar sobre a elaboração literária da matéria vivenciada”. (HOLLANDA, 1976, p. 9). Essa posição tem origem no discurso escatológico de quem leva essa mesma linguagem ao seu limite, estendendo-a de modo a induzi-la ao calão infame como argumento fartamente empregado pela poesia durante a ditadura militar com a intenção do confronto com relação ao moralismo que o caracteriza. Essa posição diz respeito ao lugar da fala de quem assume através do enfrentamento a dimensão de uma poesia que busca romper com as formas já estabelecidas. Isso concorre para que a poesia de Flávio Nascimento caracterize uma posição crítica que se renova em face da alteração significativa que promove nos códigos de que se utiliza.

Por esse meio, Flávio Nascimento não tem como deixar de se servir de um processo de catarse que se faz presente na trilogia Cordel urbano desbocado (1984), Cordel futurista (1985) e Cordel teatral (1987), na ocasião em que a poesia dos repentistas cantadores de coco do Nordeste dialoga com o ritmo sincopado do samba carioca ditando o aspecto teatral de uma realidade social que vai ao limite da transgressão ao descaracterizar os mitos da sociedade de consumo, bem como os elementos inerentes ao período da ditadura militar que chega ao seu estertor. A isso corresponde o esvaziamento dos sonhos de uma sociedade cujos símbolos de poder e consumo têm na poesia de Flávio Nascimento um dado de ironia que concorre para a destituição de tudo quanto se constitui em ruína sem que se dê o tempo necessário para que esses termos se efetivem como elementos de cultura. “Na paródia e no pastiche, não a canibalização dos estilos, mas a não-dissolução das diferenças, o não-apagamento das oposições, o direito do outro se expressar por si”. (CABAÑAS, 2005, p. 21). Assim, a dimensão do que se mostra presente em sua poesia coteja os termos das culturas arcaica e moderna com a configuração polimorfa das culturas urbana e rural, dando azo ao que se mostra como resultado surpreendente. Essa surpresa tem como efeito a sucessão dos estilhaços de uma poesia que transita por diferentes escaninhos, residindo nesse aspecto seu sentido e seu significado, uma vez que lhe cabe seguir na contramão das manifestações poéticas conservadoras.

Nesse aspecto, a poesia de Flávio Nascimento possui a capacidade de superar a si mesma, uma vez que o ex-seminarista e acadêmico de letras abre mão dessa formação no sentido de promover alianças com elementos referentes à linguagem comum das ruas. Isso ocorre na medida que ao poeta cabe mimetizar a desigualdade social em seu entorno na condição de quem a percebe com extrema nitidez, extraindo dela o fundamento do que transmite em sua obra. Cabe ainda ser pensada a forma através da qual a Poesia Marginal encurta a zero a distância entre a escrita e a fala. “Convertida em antiarte, a arte abandona os museus, as galerias, os teatros. É lançada com outra linguagem, assimilável pelo público: os signos e objetos de massa”. (SANTOS, 1986, p. 36). Nesse sentido, os recitais de rua, ao convocarem o público que deles toma parte, promovem a redução da linguagem a sua condição básica e essencial, não sendo possível haver a lembrança de outra atitude que tenha sido capaz de tamanha proeza. Ao promover essa alteração brusca, no que se refere à recepção da poesia pelo público, Flávio Nascimento consegue auferir a ela um efeito extraordinário, na medida em que os teóricos de literatura, ao contrário dessa investida, observam as formas inovadoras de concepção da poesia sem, no entanto, fazer com que o resultado de seus estudos chegue à massa que circula nas grandes cidades.

Cinema e teatralidade

A possibilidade de a poesia deixar de lado seu lugar canônico em favor do que passa a representar a ocupação do espaço da oralidade inerente à sua relação com os recitais de rua encontra filões dos mais variados. No exemplo específico do que se faz presente na poesia de Flávio Nascimento, há que se destacar a experiência conhecida como Caixinha de Cinema ou Cineminha Lambe-Lambe. Essa experiência consiste na continuação de seu trabalho como professor do ensino público do Rio de Janeiro. “Assim, o foco da crítica social passa do plano das ideias para o interior da vivência cotidiana sentida na riqueza de sua dimensão política”. (HOLLANDA; PEREIRA, 1982, p. 54). Por esse meio, as aulas de estímulo à leitura ministradas aos alunos do ensino fundamental, que consistem na leitura de clássicos, a exemplo do conto “A nova Califórnia”, de Lima Barreto, ou do poema “Cobra Norato”, de Raul Bopp, entre outros, transformam-se em desenhos que são colocados em série dentro de uma caixa de madeira com uma tela de vidro e rodados a partir de dois rolos, dando a impressão de que o público assiste a um filme de cinema. Diante desse artefato, Flávio Nascimento reproduz vozes e imitações referentes à narrativa reproduzida por seus alunos, estabelecendo uma aproximação singular com o público que se aglomera ao seu redor.

A dimensão a que esse trabalho busca atingir concorre como experiência das mais profícuas, no que se refere à possibilidade de uma interação completa com o público. Nesse sentido, a poesia supera qualquer possível limitação, no que tange à sua expressão tradicional para se converter em caixa de surpresas de onde podem surgir diferentes formas de improviso. Assim, a criação poética se multiplica em sucessivas expressões de uma linguagem fragmentada que convoca os diferentes ruídos da cidade a dar cada qual a sua contribuição. Por esse meio, Flávio Nascimento opera uma espécie de recorte no que se refere à extração de uma oralidade presente no viés artístico e paródico do povo que retorna aos seus lares no final do dia. “Como tal, a paródia trata-se de uma das formas mais frequentemente adaptadas pela auto-reflexividade no nosso século. Assinala a intersecção da criação e da recriação, da invenção e da crítica”. (HUTCHEON, 1985, p. 128). O contraponto a uma existência de trabalho e privações encontra sua referência no processo catártico promovido pelo que sai de dentro da Caixinha de Cinema que Flávio Nascimento aciona com rara competência e precisão. Os recursos da oralidade que superam as formas da poesia escrita adquirem uma dimensão muito poucas vezes atingida por uma experiência que demanda recursos tão simples. Isso corresponde ao que mais tarde as técnicas da informática teriam a possibilidade de pôr em prática.

Além disso, a Caixinha de Cinema estabelece uma relação com o humor circense que se manifesta de forma plena, uma vez que Flávio Nascimento dela consegue extrair muito mais que a representação dos desenhos de seus alunos. Nesse sentido, a proposição de um jogo lúdico que perpassa várias características da arte envolve não apenas a poesia, mas, do mesmo modo, o cinema, a narrativa e o teatro, concorrendo para a efetivação de uma simbiose entre esses processos de criação como manifestação de um encontro marcado com a pluralidade. Daí a criação decorrente desse artefato de cultura promover uma forma específica de apresentação artística que ultrapassa sua mera condição de objeto lúdico para potencializar efeitos que se mostram inusitados, uma vez que sua funcionalidade consegue a um mesmo tempo e em um único espaço atingir objetivos múltiplo e diversos. “Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? ” (BENJAMIN, 2002, p. 115). Mais ainda, podemos afirmar que a Caixinha de Cinema concorre para confundir os termos do que possa significar a arte de um modo geral, em suas várias representações de oralidade como um princípio básico do que a proposta poética de Flávio Nascimento agrega em seu sentido mais pleno, não havendo alternativas que se mostrem capazes de reverter o seu rumo.

O significado da Caixinha de Cinema como um instrumento de propagação da cultura oral estende suas ramificações na direção de um programa que se impõe como única condição capaz de conferir legitimidade ao processo de criação de que Flávio Nascimento se serve como possibilidade de fruição de seu trabalho pelo público. Por essa via, a informalidade da poesia alcança lugares improváveis, uma vez que deliberadamente desestabiliza o que poderia representar o cânone como espaço de reconhecimento. Nesses termos, a desestruturação da linguagem obedece a um procedimento previamente urdido por Flávio Nascimento, o que concorre para que as manifestações da oralidade possam sintetizar um processo de desconstrução que tem na expressão poética seu ponto mais elevado. “Um texto onde se possa ouvir o grão da garganta, a patina das consoantes, a voluptuosidade das vogais, toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da língua, não do sentido, da linguagem”. (BARTHES, 1996, p. 86). Em vista disso, a dimensão desse trabalho se mostra capaz de despertar no público um elevado índice de curiosidade, mesmo em face da simplicidade que se traduz em sua execução. Na prática, a Caixinha de Cinema concorre para transformar o sonho e metamorfosear a realidade, a partir do instante em que os dirige para o lugar que lhe convém.

No contexto em que se insere a poesia de Flávio Nascimento, a Caixinha de Cinema atua como um elemento que acaba por representar a forma principal de seu trabalho de poeta e ator. Diante disso, sua relação com a dinâmica imposta pelo público dialoga com o que dele se oferece, a partir de um processo de comunicação que se instaura de modo absoluto em diferentes instantes. A isso parece corresponder a versatilidade artística de que Flávio Nascimento se serve como instrumento único sem o qual a viabilidade desse projeto estaria comprometida. Por conta disso, há que se pensar acerca das formas da oralidade que a poesia assume tendo em conta a superação do marasmo que se impõe por ordem da censura aos meios de comunicação durante o regime militar. “A pessoa e o jogo do intérprete, o auditório, as circunstâncias, o ambiente cultural, as relações intersubjetivas entre o representado e o vivido”, no momento da performance”. (ZUMTHOR, 2007, p.18). Desse modo, as formas que se consubstanciam como manifestações de todas as regras possíveis aprofundam o abismo que as segrega do autoritarismo vigente. Para tanto, não são medidos esforços no sentido de se poder inviabilizar os registros da interdição sobre a palavra que tende a cada vez mais se tornar precária.

Em razão do que se configura na poesia de Flávio Nascimento, por conta da experiência contida na Caixinha de Cinema, há que se pensar acerca das possibilidades múltiplas que incorporam valores inerentes aos estilhaços de cultura presentes na Poesia Concreta, no Poema Processo e no Tropicalismo. Desse modo, pela via da Poesia Marginal, a experiência de Flávio Nascimento agencia os mecanismos da oralidade a conceitos teóricos que atingem mais que o público ligado à cultura de massas, no que diz respeito às manifestações de rua, que em nada correspondem ao escopo teórico das elites. Nesse sentido, a dimensão crítica de alguns movimentos não consegue se descolar de sua ligação aos meios acadêmicos. ‘A opção de ser marginal – isto é, por estar fora dos circuitos comerciais do livro, por circular de mão em mão, por estar pichada nos muros, por estar impressa em folhetos jogados do alto dos edifícios’. (CAMPEDELLI, 1995, p. 31). Por sua vez, a poesia de rua, em vista do exemplo perpetrado pela experiência empreendida por Flávio Nascimento, consegue de forma alternativa incorporar-se, no presente, às mídias eletrônicas e, de algum modo, pontificar, ainda que se faça representar como movimento ligado às ruas. Há que se destacar, do mesmo modo, seu distanciamento em relação à atividade política em seu sentido partidário, cabendo-lhe a atuação artística como seu maior argumento.

O processo de ruptura da Poesia Marginal em relação aos aspectos tradicionais da poesia ligada ao cânone encontra sua continuidade em sucessivas experiências, a exemplo do que a Caixinha de Cinema representa, na condição de instrumento de afirmação da poesia de Flávio Nascimento. Essa atividade mereceu a atenção de estudiosos como Affonso Romano de Sant’Anna e Heloísa Buarque de Hollanda, a quem se deve a formulação crítica de elementos que se configuram como marcas de significação dessa geração. A participação de Flávio Nascimento como intermediador de elementos de uma poesia de natureza oral e participativa ganha legitimidade, em que pese sua opção pelas formas da poesia de rua confundir os termos do que antes se apresentava em compartimentos estanques. “A cidade moderna funciona como um gigantesco livro, coletivamente escrito e coletivamente lido. Nela, as mais variadas linguagens e códigos se cruzam se fecundam mutuamente”. (LAJOLO, 2001, p. 114). Nesse contexto, a Caixinha de Cinema passa da possibilidade de elaboração dos desenhos de alunos do ensino público à condição de Caixa de Pandora capaz de articular sucessivas ideias e proposições acerca da arte em seu sentido total. Disposta de modo a apresentar-se como um brinquedo, essa experiência lúdica e teatral tende a assumir um papel inovador na atividade poética de seu empo.

Música e cultura popular

A sequência do que representa a poesia de Flávio Nascimento ganha outra dimensão, na medida em que o artista de rua passa à condição de produtor musical, compondo e gravando suas criações. A isso corresponde a tentativa que entabula em uma carreira de compositor que atinge seu ponto mais alto com “Estilhaços”, na gravação de Cátia de França, sua parceira, em 1981. O sucesso desta canção não concorre para que sua carreira de compositor junto a vários parceiros ocupe um lugar na mídia. No entanto, mais uma vez os meios alternativos atuam de modo a fazer com que se efetive um processo de inclusão da poesia como expressão de oralidade que se amplia ao âmbito da gravação de CDs quase artesanais que o acompanham em recitais de poesia e são vendidos de mão em mão. A vocação do poeta, portanto, no sentido do que representa o contato direto com o público amplia-se do discurso oral para a voz gravada pela via eletrônica. “A poesia do presente é imemorial, uma vez que é impossível guardá-la na memória para preservá-la, pois envolve todos os tempos, já que sempre esteve aí”. (SCRAMIM, 2007, p. 100). Mais que isso, interessa a veiculação de um conteúdo poético que se distancia do conceito de preciosismo vocal para inserir-se na condição de texto poético que redimensiona e ao mesmo tempo se adensa à performance corporal por meio da música, não havendo como se possa dissociar uma atitude da outra.

Nesse sentido, a música, assim como o teatro e a poesia, significa diferentes possibilidades de que Flávio Nascimento se utiliza como artista que opta por fundir todas as formas de expressão em uma única ou em várias a um mesmo tempo. Daí, há que se pensar acerca da arte como meio de comunicação do homem com o mundo contemporâneo a partir de uma relação que, a despeito de todas os meios de reprodução técnica, acaba por recorrer aos modelos representados pela poesia medieval, no que se refere à atuação de menestréis, segréis e jograis responsáveis por um conceito de obra aberta. “Somos todos, de certa maneira, escritores de ficção e poesia reescrevendo nossas memórias”. (WOOD, 2017, p. 45). Desse modo, cabe ser pensados os meios através dos quais Flávio Nascimento se serve da técnica, uma vez que a reprodução de suas composições em CDs vendidos no varejo, enquanto se apresenta em recitais e saraus, corresponde a um incremento que em maior ou menor medida viabiliza sua relação com a arte, a partir da poesia, e se estende por outros caminhos. Assim, criação poética diz respeito a formas indeterminadas, uma vez que a Flávio Nascimento toca a sensibilidade de entender os elementos específicos da contemporaneidade, buscando do mesmo modo disponibilizar sua obra pela internet.

A isso agrega-se a capacidade de o poeta conviver de modo bastante saudável com os meios midiáticos que lhe fornecem condições fundamentais à continuidade de um trabalho que na atualidade, decorridos mais de cinquenta anos da publicação de Treva, seu livro de estreia, ainda busca manter o fôlego criativo ao recorrer às ferramentas que se fazem possíveis. “Forma de preservação da individualidade, essa poesia dispersa é muito mais uma busca de reconhecimento e identidade, maneira precária de dizer que estamos vivos, do que um acontecimento literário”. (BRITO; HOLLANDA, 1974, p. 83). Nesse sentido, em vista do que representa o tocador de pandeiro, acrescenta-se a seu trabalho o universo da informação que hodiernamente se faz representar ao ocupar posições que se mostram necessárias. No entanto, a Flávio Nascimento cabe manter-se ligado à prática dos recitais, ainda que recorra à gravação de CDs e aos elementos da internet como uma continuação de sua relação com a oralidade. No cômputo das ações deflagradas pela poesia de Flávio Nascimento, insere-se algo em torno do significado da oralidade como condição básica à relação do ser humano com o mundo. Por esse motivo, a poesia caminha por todos os meios que lhe são possíveis, agenciando sua eficácia em vista dos sucessivos estilhaços que correspondem às formas da cultura de um modo geral.

Em vista do que representa o movimento de poesia de rua na década de 1980, a multiplicidade de expressões da oralidade converte-se em polifonia de vozes quase sempre dissonantes, ratificando as tendências que caracterizam a poesia contemporânea. “Se desapareceu a crença na eficácia social da palavra poética, que alentou as décadas anteriores, não quer isso dizer, porém, que a sensibilidade política coletiva tenha desertado da poesia”. (NUNES, 2009, p. 172). A arte em sua inteireza retira o poeta de seu espaço privilegiado, condenando-o ao convívio do público que se diferencia por completo dos antigos leitores de poesia caracterizados como uma camada de especialistas. A posição do leitor passa a ser a do ouvinte, a partir da configuração de uma sociedade urbana que se movimenta em razão da rapidez das ações que se atomizam. Nesse sentido, a dimensão do que representa a oralidade, mais do que o túmulo onde a poesia se encontrava sepultada, na forma dos clássicos a que poucos leem, concorre para uma abertura de sentidos que incorpora diferentes elementos. Nesse ponto, a demanda de matéria poética amplia-se na possibilidade do acesso à massa que se vê na condição de agente desse processo.

A capacidade de incorporação dos elementos que antes davam conta do desejo fruição e do acesso a bens culturais referentes a uma classe restrita passa a ocupar os espaços de pertencimento de contingentes cada vez maiores que do mesmo modo têm na poesia um efetivo canal de expressão. Nesse sentido, a poesia mimetiza o seu entorno, na condição de instrumento que traz para o âmbito da convivência humana a idealização de um mundo que concorre para tornar mais branda a carga que cada um carrega ao longo da existência. “Um texto pode sempre ler o outro, e assim por diante, até o fim dos textos”. (GENETTE, 2006, p. 10). A oralidade, portanto, representa o sentido mais elevado da comunicação, emanando de sua presença a própria razão de ser da condição humana, em vista dos contatos que se estabelecem como expressões essenciais. Diante disso, Flávio Nascimento parece recolher com as próprias mãos o barro com que produz seus artefatos de comunicação, estabelecendo uma relação de nível pessoal com o público. Por sua vez, as experiências que empreende podem representar miniaturas, em vista do que se caracteriza como processo de dimensões inimagináveis, fazendo-se representar pelos meios de comunicação de massas. No entanto, esse microcosmo de criação pode vir a potencializar uma dimensão crítica sem precedentes, na condição de instrumento de cultura.

Os CDs que Flávio Nascimento produz em um pequeno estúdio de Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro, servem para agilizar a prática cotidiana do poeta como parte integrante de sua criação, em vista da representação da arte e do papel do artista como alguém que não mais necessita da intermediação de agentes culturais credenciados pelo mercado de consumo para que sua obra se torne viável, diante da dimensão de seu lugar na sociedade. Se seu primeiro livro foi impresso pelas mãos de detentos, nada mais se pode acrescentar acerca de uma expressão da poesia que recorre às formas do discurso coloquial e oral dos que ainda não aprenderam a falar, se for pensada a condição da escrita como atributo das elites que dominam os meios de acesso ao conhecimento. “Escrever grande poesia é o que basta a um homem realizar neste mundo desvinculado de nós mesmos”. (HAMBURGUER, 2007, 147). A expressão da fala e do gesto que se integra à criação poética de Flávio Nascimento, no contexto de um país em que o pensamento crítico tem sofrido intervenções ao longo da história, serve ao povo em sua necessidade de comunicação como denúncia de tudo quanto o afeta em sua condição essencial.

Os CDs que Flávio Nascimento produz em um pequeno estúdio de Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro, servem para agilizar a prática cotidiana do poeta como parte integrante de sua criação, em vista da representação da arte e do papel do artista como alguém que não mais necessita da intermediação de agentes culturais credenciados pelo mercado de consumo para que sua obra se torne viável, diante da dimensão de seu lugar na sociedade. Se seu primeiro livro foi impresso pelas mãos de detentos, nada mais se pode acrescentar acerca de uma expressão da poesia que recorre às formas do discurso coloquial e oral dos que ainda não aprenderam a falar, se for pensada a condição da escrita como atributo das elites que dominam os meios de acesso ao conhecimento. “Escrever grande poesia é o que basta a um homem realizar neste mundo desvinculado de nós mesmos”. (HAMBURGUER, 2007, 147). A expressão da fala e do gesto que se integra à criação poética de Flávio Nascimento, no contexto de um país em que o pensamento crítico tem sofrido intervenções ao longo da história, serve ao povo em sua necessidade de comunicação como denúncia de tudo quanto o afeta em sua condição essencial.

Diante disso, a quantidade de vozes que têm por objetivo imitar a realidade humana, evidenciando as fraturas decorrentes de seu percurso, assume seu lugar através de um discurso que busca desconstruir a fala, na medida em que os mecanismos de que o poder instituído se serve reproduzem quase sempre o dicionário da opressão da palavra sob interdição. Daí a atuação de Flávio Nascimento, por intermédio de seus livros mimeografados, sua Caixinha de Cinema e seus CDs, servindo-se dos elementos gestuais dos comediantes da Idade Média, buscar atualizar a poesia em vista do que esta possui de mais original, ou seja, sua potencialidade como um objeto de cultura a ser devolvido a quem de direito, na medida em que para ele, cinco ou mais pessoas já se constitui em multidão. “O que importa não é dizer, mas redizer e, nesse redito, dizer a cada vez, ainda uma primeira vez”. (COMPAGNON, 1996, p. 4). Nesse processo, a titulação acadêmica é colocada de lado, uma vez que sua dissertação de mestrado sobre a obra de Lima Barreto, distanciada de seu contexto, atua apenas como uma referência no trabalho de quem, a exemplo do escritor suburbano, estabelece com a escrita uma relação que passa pela intermediação da cultura popular.

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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. 2 ed. São Paulo: 2007.

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