Salve o compositor popular: diversidade e sofisticação na criação poética e musical de Flávio Nascimento

Desde o século XIX no Brasil, especificamente no período que corresponde ao Romantismo, na ocasião em que a modinha portuguesa, segundo Mário de Andrade, começa a deixar para trás o recinto fechado das residências burguesas para ocupar o espaço aberto e mundano das ruas, compositores populares e poetas da série literária dão início a um relacionamento que tende a progressivamente se estreitar logrando êxitos sucessivos que são introduzidos na memória afetiva do povo brasileiro como uma espécie de patrimônio inalienável. Há que se ter em conta o exemplo do poema “O gondoleiro do amor”, de Castro Alves, musicado por Salvador Fábregas, que mesmo em face de um tempo desprovido de instrumentos de reprodução técnica, acaba por tornar-se um hino dos jovens namorados. Isso também diz respeito a poetas como Medeiros e Albuquerque, Bastos Tigre e Olegário Mariano, que compuseram canções que logo a seguir passam a contar com o auxílio do mercado musical em processo de expansão, na medida em que a indústria fonográfica e o teatro de revista e constituem em veículos de acesso ao lazer da classe média ascendente.

Nesse aspecto, a relação entre música e poesia por algum tempo passa a contar com a colaboração de partes distintas que se aliam e se separam, na medida em que o poeta oriundo da tradição livresca se consolida em seu espaço de atuação do mesmo modo que o compositor popular, que assume a responsabilidade de ser a um mesmo tempo músico e poeta. Para tanto, contribui o acontecimento representado pelo Modernismo como processo de liberação da condição do poeta e do letrista como elementos comuns, não havendo diferença entre ambos. Assim, versos que se tornaram conhecidos na música popular, em “Conversa de botequim”, de Noel Rosa e Vadico: “telefone ao menos uma vez/ para 344333”, ou em “Acertei no milhar”, de Wilson Batista e Geraldo Pereira: “e vou comprar um avião azul/ para percorrer a América do Sul”, poderiam ter sido escritos por poetas da série literária como Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Do mesmo modo, alguns epígonos do Parnasianismo contribuem para que se efetive o retorno de formas poéticas que recuperam nas letras das canções o rebuscamento por vezes retórico e passadista que atende ao gosto de uma parcela do público que não se deu conta das mudanças em curso.

No contexto inovador do Modernismo considera-se a incorporação, no âmbito da música popular, do processo de diluição que se faz representar na obra de compositores como Lamartine Babo e Assis Valente que, a exemplo dos já citados Noel Rosa e Wilson Batista, entre tantos outros, entendem com exatidão a incorporação à dicção popular decorrente das falas do cotidiano de que a poesia livresca se serve em processo radical de transformação. No entanto, se faz necessário refletir acerca do esgotamento dessas formas inovadoras, uma vez que a música popular do pós-guerra se submete à absorção passiva de gêneros musicais como o tango e o bolero, dando conta de opções que deliberadamente contribuem para reduzir de modo significativo seu elevado índice de criatividade. A isso corresponde a posição assumida pela Bossa Nova como termo que tenciona a relação como manifestações da música popular condenadas à obsolescência. A Bossa Nova, em que pese a contribuição de poetas ligados ao cânone, a exemplo de Vinícius de Moraes, e de cantores e compositores do nível de João Gilberto, Carlos Lira e Tom Jobim, esgota-se com certa rapidez, propiciando desdobramentos que se refletem no que passou a ser chamado de MPB.

A isso acrescenta-se o momento que corresponde ao golpe militar e à ampliação dos espaços da indústria cultural por meio de movimentos como a Jovem Guarda e o Tropicalismo. Assim, com o cerceamento da atividade acadêmica, em vista da preterição à liberdade de pensamento, uma plêiade de poetas de formação universitária encontra um espaço de atuação viável nos programas e festivais de música popular veiculados pela televisão, a partir do que se convencionou chamar de guerrilha cultural. A tensão decorrente desse momento de crise contribui para que a emergente Poesia Marginal se constitua em extensão da música popular que não especificamente se vincula às paradas de sucesso, concorrendo de modo paralelo como alternativa ao que se consubstancia no mercado de consumo. Há que se pensar, portanto, que a música popular tende a esgotar suas formas de expressão, vindo a se constituir em configurações abastardadas de formas que se repetem à exaustão, em razão do que o consumo sem crítica viria a se transformar.

Todas essas informações vêm à luz com o objetivo de ser possível pensar acerca da poesia de Flávio Nascimento e sua origem, a partir da Poesia Marginal, ao utilizar-se da criação musical como mais uma ferramenta viável à expansão de seu talento. De modo específico, Flávio Nascimento abriu mão do contato direto tanto da poesia canônica quanto da indústria cultural para estabelecer uma relação de criação poético e musical com artistas da periferia e do interior do Rio de Janeiro, convocando uma série de parceiros musicais que reiteram a diversidade e a sofisticação de estilos variados que rejeitam o lugar-comum do que passa a ser veiculado pela cultura de massas como decorrência da alienação que se impõe. Depois do êxito de “Estilhaços”, de parceria com Cátia de França, Flávio Nascimento recolhe-se a um sítio em Jacarepaguá, no subúrbio, e depois a Nova Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro, investindo na pluralidade de estilos musicais e expressões poéticas que atendem a uma demanda de sofisticação da arte de compor sem que isso se manifeste como sinônimo do reducionismo inerente ao que o mercado exige.

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A opção pela música funciona como um instrumento que aprofunda o sentido melopaico presente no conjunto da poesia de Flávio Nascimento, na medida em que o pandeiro que serve de acompanhamento a seus recitais acrescenta ao texto poético uma condição rítmica que se constitui em termo integrante ao que verbaliza. Há que se perceber em sua obra a presença da música como termo inalienável, o que concorre para ampliar o espaço de atuação do poeta em direção ao que se faz representar pelo compositor. O jogo de palavras de que se serve pode perfeitamente prescindir do acompanhamento melódico referente às canções que produz, uma vez que a poesia em sua vertente sonora atende de modo exemplar à demanda do poeta nordestino ambientado ao Rio de Janeiro, para quem o ritmo dos cantadores de coco e embolada possui o mesmo sentido e a mesma proposição nos sambistas e improvisadores de partido alto. Assim, pode ser observada a sobreposição de termos dispersos que acabam por se integrar como proposta referente a uma inteireza diante da qual poema se faz capaz de dar conta de seu sentido, a exemplo de “Cara ou coroa”, de parceria com Bira Cunha:

Rotina ou acaso
Namoro ou caso
Fico em casa
Ou vou pra rua
Sol e lua
Vestida ou nua
É sonho ou fato
Acaricio ou maltrato
Achado, perdido
Inteiro, partido
Lembre ou esqueça
Coração e cabeça

A partir deste exemplo pode-se refletir acerca de que a letra, de modo independente, reflete a capacidade de o poeta poder atuar como um melodista, uma vez que a significação sonora que imprime a seus versos concorre como uma sugestão de quem parece impor à parceria sua marca registrada. Nesse sentido, efetivs-se um jogo de contrastes que atua tanto do ponto de vista semântico quanto da sonoridade de que se faz representar como objeto poético e musical. A dimensão criativa de quem submete a letra da canção a sucessivos efeitos sonoros parece não ter limites, uma vez que a canção pode ser seguidamente repetida numa espécie de moto-contínuo de dimensão sequente e indefinida. Nesse aspecto, a canção sugere uma sequência de significados contrários que se fazem representar em razão de sugestões de sentido que induzem à ideia de um mantra. A isso acrescentam-se as lições de que Flávio Nascimento absorve em seus estudos sobre a pesquisa etnográfica de Mário de Andrade em seu contato com os cantadores populares em suas duas viagens ao Norte e ao Nordeste, ratificando a existência da música como termo que se estende a todas as possibilidades do fazer humano.

Diante disso, Flávio Nascimento apodera-se com elevada dose de maestria dos significados da criação musical como expressão de um artesanato comum a diferentes segmentos da sociedade para poder delimitar o espaço específico inerente à sofisticação do que em sua origem caracteriza-se em sua simplicidade. Assim, esse dado de sofisticação de que se serve na concepção de sua poesia não prescinde de um vocabulário quase sempre coloquial, adensando a essa proposição os elementos de uma musicalidade que se transpõe do texto ao contexto, ao dar conta de significados intrínsecos relativos à poesia como expressão da existência do poeta. A música, portanto, apresenta-se como manifestação que antecede a criação decorrente da configuração do texto poético, na medida em que a repetição de determinadas células musicais parece nascer antes das palavras que delas se fazem acompanhar, remetendo ao que no cômputo da obra poética e musical de Flávio Nascimento diz respeito a significado do que Mário de Andrade identificou na musicalidade de Chico Antônio, cantador e improvisador que tanto o impressionou.

Assim como Chico Antônio se fazia acompanhar por um ganzá, Flávio Nascimento se serve de um pandeiro, sendo esse instrumento uma verdadeira oficina de onde emana o ritmo que impõe à poesia que escreve. Essa escrita, por sua vez, não é senão a consequência de um permanente estado de musicalidade a determinar a sequência diária da vida como uma imitação da arte. Diante disso, pode ser percebida a possibilidade de a música ser parte integrante de um processo de afirmação da condição humana em todas as suas funções essenciais, constituindo-se no ritmo que determina as relações dos indivíduos em sua movimentação diária. A isso pode ser acrescentado o exemplo de Flávio Nascimento como artista em tempo integral, na medida em que a poesia e a música determinam os segmentos de sua intimidade com fazeres referentes às coisas que o cercam. Por esse meio, sua atuação como músico, poeta e ator parece advir de um único termo de criação, fazendo-o dialogar com os primórdios do teatro na Antiguidade, ou mesmo com a multiplicidade de vozes e sons da criação artística na Idade Média.

Nesses termos, pode ser pensado, do mesmo modo, que ao passo em que a Flávio Nascimento toca a possibilidade de se servir da música como um permanente exercício sua atividade o transporta ao significado pleno da criação como extensão de uma vontade superior, uma vez que criador e criatura se irmanam em dimensão mágica como resultado de tudo quanto a existência impõe a cada um. Nesse sentido, as canções que compõe, sozinho ou com a participação de seus parceiros, compreende uma relação intrínseca com o barro de que somos feitos, uma vez que o poeta e o músico vão ao encontro de formas específicas que se somam às sonoridades da própria existência a cada dia recontada. Na mesma proporção em que o maestro Villa-Lobos adentrou a selva amazônica em busca de elementos da música presente no canto das aves, no murmúrio do vento sobre o arvoredo e no soar da correnteza dos rios, Flávio Nascimento também se aventura a recolher a musicalidade pedida nas diferentes expressões da contemporaneidade. Assim como procedeu o famoso maestro, os fragmentos que recolhe remetem à configuração de um mosaico cuja importância se mostra essencial.

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A música popular se integra à poesia de Flávio Nascimento de modo a que não se tenha a dimensão exata do começo e do término de cada uma em seu processo de elaboração. A dimensão espacial do poeta se transmuta em relação a uma concepção sonora que representa a própria música em sua vertente mais original. Nesse sentido, o poeta e o compositor se fundem de modo a elaborar objetos artísticos que, mesmo com o auxílio de seus parceiros, se impõem como termos de configuração integral, parecendo terem todos uma única autoria, sendo Flávio Nascimento parceiro de si mesmo. Algumas canções funcionam como exemplos de melodia que se funde à letra como se a inteireza do texto escrito sobre o papel pudesse por conta própria lhe oferecer um sentido sonoro em que a sobreposição de palavras, antes de representarem um mero processo de aglutinação, tão comum à poesia moderna, contribuísse para que a composição pudesse se apresentar como um constructo de significado plenamente original, a exemplo de “Viagem imóvel”, de parceria com Chico Mossoró:

Navio, corpo solto na amplidão
Pavio, peito aceso em solidão
Deixe para trás as ânsias do cais
Calmaria sem pirataria, tudo em paz

Tubarão, dragão
Tesouro sem fim
Avião, balão
Ave, zepelim

O amor é um mar de calma e inquietação
Paisagem sempre viva em mutação
Sou menino, submarino coração
No abraço infinito da paixão

Arca de Noé
Luz de Aladim
Viajo sem parar
Por entro de ti
Viaje sem parar
Por dentro de mim

O exemplo da canção acima subentende sucessivas aliterações que atuam mesmo sem a instrumentação musical. A ideia do canto, presente na obra de poetas como Dante Alighieri, Luís de Camões e Ezra Pound subentende uma concepção do verso em seu conjunto de estrofes. Por sua vez, a poesia, de um modo geral, excetuando-se desse contexto os exemplos de João Cabral de Melo Neto e da Poesia Concreta, avessas à presença da música, encontra em Flávio Nascimento um termo que se integra de modo adequado a um corpus referente à poesia brasileira em sua concepção moderna. A essa concepção também podem ser acrescidos os elementos arcaicos encontrados na poesia medieval que chega ao Brasil com os colonizadores advindos da Península Ibérica. A isso acrescenta-se uma verve popular de configuração extremamente elaborada, se for pensada a concepção poética dos cantadores nordestinos como um elevado índice de resolução formal que teria caudado forte impressão a importantes segmentos, a exemplo do que deles pensam os concretistas.

Do mesmo modo, cabe se pensar a respeito de como Flávio Nascimento se insere na criação de música popular sendo ele um letrista ou, mais que isso, o autor de suas composições. Nesse aspecto, o que passaram a representar letristas como Cacaso, Capinam, Torquato Neto, Abel Silva, Geraldo Carneiro, Fausto Nilo e tantos outros, quase sempre oriundos da série literária e dos meios acadêmicos, ganha uma dimensão própria. Por sua vez, Flávio Nascimento, acompanhado de seu pandeiro e de seu violão, se apresenta como um compositor inspirado de canções em que tanto a letra quanto a melodia parecem nascer a um único tempo. Obedecendo ao que sua inspiração sugere, a poesia desafia um rosário de temas variados que dizem respeito um enorme repertório acumulado ao longo dos anos. Nesse contexto, expressões advindas do baião, do forró, do samba, do blues, da marchinha e do samba-canção, entre muitos outros gêneros, remetem Flávio Nascimento à influência recebida de compositores como Lamartine Babo, Dorival Caymmi, Cartola, João do Vale, João Bosco e Luiz Melodia, uma vez que canções como “Grau dez”, de parceria com Ari Barroso, “O mar”, “O mundo é um moinho”, “Pisa na fulô”, de parceria com Ernesto Pires e Silveira Júnior, “Me dá a penúltima”, de parceria com Aldir Blanc, e “Pérola negra” lhe servem de inspiração.

Em razão de sua presença como arista que se exercita em muitas atividades, Flávio Nascimento expande sua versatilidade criativa como cantor de estúdio, ao gravar em CD suas próprias composições, todas elas disponíveis no Spotfy. Nessas gravações apresenta-se um intérprete seguro de seu papel de atuar por iniciativa própria na divulgação de seu trabalho. Em que pese a difusão de suas canções por instrumentos ligados à reprodução técnica, Flávio Nascimento não consegue abrir mão da originalidade que tanto significou, nos termos da pesquisa de Mário de Andrade, em sua visita aos terreiros de catimbó do Nordeste. Trata-se do fato de que Flávio Nascimento, que durante vinte anos frequentou os rituais da umbanda, ter incorporado a seu trabalho diversas formas musicais de suas manifestações de magia e encantamento, que concorrem para fazê-lo compor peças musicais dedicadas às suas entidades. Desse modo, os orixás, encantados e espíritos recebem tratamento especial em seus CDs ao serem reverenciados com canções especificamente compostas com a intenção de homenageá-los como partes indissolúveis, no que diz respeito à inspiração do compositor e poeta.

Na condição de artista que abdicou da carreira acadêmica para se aproximar de modo efetivo de uma concepção popular de cultura, Flávio Nascimento remete sua criação poética e musical à presença indissociável da cena cultural de compositores como Silas de Oliveira e Osório Lima, arautos de uma concepção musical que tem origem nas vozes advindas da oralidade do povo, além de que também dialoga com intérpretes como Caco Velho e Germano Mathias, o primeiro, dono de recursos que transformavam sua voz em instrumento, e o último um inovador capaz de se fazer acompanhar ao ritmo de uma lata de graxa. Assim, apresenta-se parte da obra de Flávio Nascimento como registro de uma poesia cantada, hoje comum à linguagem do funk, do rap e do hip-hop, e presente na poesia de Arnaldo Antunes, que se incorpora aos ritmos e falas do cotidiano. Aproveitando-se dos restos deixados à margem do processo de depredação imposto pela sanha devastadora do capitalismo, Flávio Nascimento não se deixa abater, seguindo em frente e compondo seus poemas e canções ao som de um pandeiro, instrumento que potencializa sua condição singular, a exemplo do fazia Ciro Monteiro, ao tirar música de uma caixa de fósforos, ou Luiz Barbosa, ao improvisar ritmos na palheta de seu chapéu.

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À guisa de conclusão, cabe destacar, no conjunto da obra de Flávio Nascimento, a presença de uma musicalidade implícita em sua condição de artista multimídia que atua em diferentes campos da arte. Como exemplo, pode ser destacada sua participação em espetáculos de rua como ator teatral, sobretudo em sua condição de clown, mesclando a esse aspecto o dado circense como continuidade de sua verve de poeta e sua inspiração de músico. Nesse sentido, muito antes de ser estabelecida a presença do artista em uma espécie de totalidade criativa, seu trabalho já antevê os tempos que estão por vir, uma vez que nada mais faz que representar em tempo integral no palco da vida, a exemplo do que teriam sido os jograis, segreis e menestréis na Idade Média, a um mesmo tempo músicos, cantores, atores e poetas. Além disso, há que ser pensada sua atuação como ator de cinema ao encenar sua própria história no documentário “Flávio Nascimento, o poeta de Lumiar”, dirigido e produzido por Pedro Kiua. Mais ainda, sua presença como ator também tem destaque em outro documentário: “Cinelândia by night”, produzido por Mauro Neme, uma espécie de happening ambientado na Feira de Poesia Independente que acontecia no Centro do Rio de Janeiro na década de 1980, dando vazão a mais esta faceta de quem se apresenta em sua multiplicidade criativa.

Valdemar Valente Junior

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