Os versos de Flávio Nascimento seguem uma trajetória muito particular dentro do panorama da poesia surgida em fins dos anos 60 e que se firmou nos 70 no Rio de Janeiro. No mar de heterogeneidades poéticas que gerou a poesia que se convencionou chamar de marginal, podemos divisar, grosso modo, dois caminhos principais: a produção de poetas com um pé na universidade, como Cacaso e Ana Cristina César, elaborando uma poesia que se deixava impregnar, de algum modo, pelos ares do tempo, em que atitudes transgressoras na linguagem, no modo de produção e na vida significavam formas explícitas ou implícitas de resistência política, mas que, contudo, não abandonavam o diálogo com a tradição poética do Ocidente, incorporando de modo inventivo elementos dessa (alta) cultura à teia de seus versos; e um outro, o da poesia propriamente marginal, desbundada, libertária, atravessada de cotidiano, humor e coloquialidade, transitando por praças, bares, redutos sociais e artísticos, transbordando de força vivencial desreprimida em versos de forma livre e flutuante.
A obra de Flávio Nascimento provou, pelo menos, dessas duas faces da maçã do período e, a partir dos anos 80, abriu um caminho próprio, nascido do entrechoque de aspectos radicalizados e/ ou amortecidos de ambos os lados. É o que podemos constatar após a leitura da antologia Poesia na rua (1967-1997), 18º livro da editora Ibis Libris, criada há três anos pela poetisa Thereza Christina Roque da Motta, que apresenta na maior parte de seu catálogo livros de poesia, em edições cuidadosas e bem acabadas, servindo, a um só tempo, para recuperar vozes de qualidade de nosso passado recente e para viabilizar a produção poética que floresce, a partir de meados dos anos 90, em encontros e recitais espalhados por diversos pontos da cidade.
São marcantes dois livros da obra inicial de Flávio Nascimento: Treva, de 1967, com prefácios de Chico Buarque e Torquato Neto, apresenta uma poesia que insinua já um esboço de dicção própria, culta, que poderia ter gerado bons frutos se não tivesse sido abandonada pelo poeta em nome do comprometimento marginal; o coroamento desse engajamento é o livro Viagens, de 1979, em que nos deparamos com a síntese das propostas de toda uma geração que é o Manisfesto para soltar os bichos: “Abaixo o Concretismo!/ Acima a Fantasia!/ Abaixo os tecnocratas da palavra!/ Acima os mágicos do verbo!”; e com pérolas do lirismo da época como Profecia (Estilhaços), musicada por Kátia de França: “Porque o teu mundo não é de aço/ e nem és um robô./ Porque espalhas estilhaços/ de amor.”
Além de letrista de música popular, Flávio Nascimento também é mestre em Literatura Brasileira formado na PUC-Rio, em 1977. Seu trabalho como professor de alunos de primeiro grau da rede municipal de ensino produziu duas propostas criativas de enfrentamento do desinteresse crônico dos jovens de nossa era audiovisual pela leitura: o método de Leitura Viva, com participações teatrais e rítmicas dos alunos e o Cinema Lambe-lambe, trabalho de ilustração coletiva de obras da Literatura Brasileira, com duração de 5 a 10 minutos, passados numa caixa mágica artesanal, ao som de música clássica e com narrativa do poeta.
A partir de sua trilogia de literatura de cordel (Cordel urbano desbocado, 1983; Cordel futurista, 1985 e Cordel teatral, 1987), a poesia de Flávio Nascimento radicaliza em direção à oralidade, habita definitivamente a rua, com pesquisas rítmicas populares, cotidianas, e postura clownesca do artista. Passa a atuar ou com um pandeiro, misturando embolada e partido-alto, muitas vezes atingindo a significação pré-lógica do signo (aqui tangencia a linguagem Zaúm do cubo-futurista russo Khliébnikov), ou em poemas que exigem a participação ativa da platéia, com o poeta buscando formar uma imensa cadeia de aminoácidos de sua arte com o povo. Nesse momento, o suporte livro deixa de ser fundamental, as folhas volantes distribuídas durante suas apresentações querem angariar antes de tudo vozes comunitárias participativas. Acabando por realizar, em bases ideológicas nacionais-populares, antecipadamente, fórmulas semelhantes às utilizadas pelos rappers e DJ’s na cultura pop globalizada.
André Gardel